Chuck Schuldiner - O Hexagrama da virtuose extramundo


A história musical desse garoto prodígio começa em 1976 quando, devido à morte de seu irmão mais velho, ele ganhou um violão e frequentou a escola de música por quase um ano. Não contente com seu abandono da escola de violão clássico, seus pais, então o presentearam com uma guitarra, despertando assim, definitivamente, sua paixão pela música.
Nascido em 1967 como Charles Michael Schuldiner em Long Sland, de família judia, Chuck deixou um legado estratosférico nos anais da música pesada, sendo, inclusive, aclamado por uma legião de fãs como o "pai do death metal", subgênero extravagante e brutal do heavy metal.

Com a solidificação do thrash metal como febre entre os jovens headbangers da época, faziam-se necessárias e inevitáveis duas formas de pensamento: a velocidade e a brutalidade, conceitos difundidos à época como "quanto mais cru e sujo, melhor".

A iniciação

Em 1983, aos 16 anos, Schuldiner aliou-se aos amigos Rick Rozz e Barney "Kam" Lee para formar a banda Mantas, despertando assim, seu desejo incontrolável em compor. Inspirados em bandas que estavam no ápice de seus respectivos sucessos como Slayer, Metallica, Venom, Possessed, Iron Maiden, Kiss e Judas Priest, a banda, com inúmeras composições em sua lineup produziu, entre os anos de 1984 e 1986, um sem número de demo-tapes de valor inquestionável para o segmento, a maioria delas já sob o nome de Death e, entre elas, as que marcaram-na como precursora e criadora do death metal: "Death by Metal" e "Reign of Terror" em 1984, "Infernal Death" e "Rigor Mortis" em 1985 e "Back from the Death" e "Scream Bloody Gore Aborted Sessions" em 1986.

O Hexagrama da virtuose extramundo

O hexagrama, polígono estrelado de 6 pontas e composto por dois triângulos equiláteros superpostos, é considerado por místicos mundo afora como algo que representa o sobrenatural, a luta entre o bem e o mal, o poder da magia mal intencionada e mais um monte de asneiras cabalísticas. Para a comunidade judaico-cristã, é a Estrela de David, símbolo que representa o poder do povo de Salomão e/ou o renascimento do Cristo, aquele que foi e nunca mais voltou [sic!].

Já para a filosofia, o hexagrama é o símbolo que representa a conjunção entre a consciência cósmica (do universo) e a sapiência telúrica (da Terra) e o desenvolvimento filosófico de Schuldiner caminhou a passos largos por essas veredas. Em poucos anos ele assimilou o melhor da filosofia universal, desde os pensamentos analíticos de ponderação de Sócrates e Platão até as observâncias cético-realistas de Nietszch, Dostoiévsky e Schoppenhauer. O interessante no decorrer de sua produção lírica é a caracterização da obra de Dante Alighieri, "A Divina Comédia", a vida com o ela é entre o céu e o inferno da existência humana, onde o viés de cunho teosófico concerne às suas composições um enredo épico-conceitual.

Poeticamente, até mesmo porque a brutalidade e a velocidade do death metal não permitem um primor lírico, as letras de Schuldiner são marcadas por rimas fáceis e geometria crua, mas no contexto intrínseco, é uma viagem de difícil compreensão para aqueles que não têm como hábito, a leitura, a meditação e o entendimento da essência humana.


O debut

Voltando à música, que me desculpem os fãs mais fervorosos, o death metal, apesar das técnicas mirabolantes de guitarra e baixo, é algo de difícil degustação, salvo a exceção de algumas bandas mundo afora, exceções essas que têm como característica principal a influência da escola de Schuldiner, no mais, não passa de um amontoado de músicos barulhentos, repetitivos e de pouca verve sonora. E por que isso? Simplesmente porque a música necessita de 3 componentes básicos para ser de bom grado: harmonia, ritmo e melodia.

Sobre a harmonia sabemos que o death metal a tem de sobra. As técnicas extravagantes unidas às complexas escalas dão até um certo status de virtuosismo aos seus executantes, o ritmo é quase sempre o mesmo, de batida repetitiva, constante e incansável, entretanto, falta ao death metal a melodia (isto para a maioria das bandas, como já foi dito). A diferença da música de Schuldiner é exatamente essa, a melodia, que é farta e até extrapola os conceitos da musicabilidade e isto já podemos sentir em seu primeiro álbum de estúdio.

Em "Scream Bloody Gore", lançado em 1987, Schuldiner (já sem a companhia de Rozz e Kam Lee) aproveitou todos os elementos disponibilizados pelo avanço do speed, do thrash, do power e do black metal da primeira metade da década de ouro naquele, trazendo consigo Chris Reifert do Burnt Offering, que mais tarde iria assumir as baquetas da Autopsy. O debut da Death é alcunhado como o primeiro álbum de death metal da história. Sabemos que isso não é uma verdade absoluta, mas a projeção que alcançou junto à crítica especializada mais a aceitação imediata e inconteste pela juventude da época faz com que esse título seja mérito de honoris causa.

Num crescente estarrecedor, "Scream Bloody Gore" deixou marcado nas mentes dos amantes da música feia clássicos como "Zombie Ritual", "Batized in Blood", a sensacional e ultra veloz "Evil Dead", culminando com a faixa título. Poucos 34 minutos que nos valem como que uma prisão eterna e divinal em algum lapso de tempo perdido nas infinitas singularidades do universo.

O aperfeiçoamento 

A necessidade perfeccionista de Chuck exigia conecções e evoluções e, para tanto, Bill Andrews, baterista da Massacre e o retorno (mais uma vez) de Rick Rozz para auxiliá-lo nos trabalhos de guitarra. Além de uma melhora considerável na produção, a evolução técnica e lírica de Schuldiner é notadamente escandalosa. O álbum "Leprosy" é lançado um ano depois, em 1988.

Velocidade e técnica aprimoradas sem deixar de lado o quesito crucial de uma boa música: a melodia. Culminou, obviamente, numa "coqueluche epidêmica" dentro do universo metal, tanto para surgimento de milhares de bandas do estilo como para o arrebanhamento de fãs por todo o mundo. Chuck e Death marcavam, definitivamente, os emblemas da música pesada.
Temas como "Pull the Plug", "Forgotten Past" e a própria faixa "Leprosy" se tornaram sinônimo do que há de melhor entre todos os segmentos do heavy metal. Com o sucesso alcançado, turnê pela Europa e América do Norte, e foi no México que Chuck convidou um guitarrista que despontava como promessa, Paul Masvidal, da banda Seaweed de thrash metal e que viria, mais tarde, se tornar referência nas icônicas Master e Cynic.


A supra evolução

A audácia de Schuldiner fez-se presente na prova de fogo do terceiro álbum, o aclamado "Spiritual Healing, lançado em fevereiro de 1990. Chuck, em primeiro lugar, mudou a temática das composições, deixando o conceito deprimente e efusivo em relação à morte e atacando o âmbito social severamente, com críticas incisivas à imoralidade social humana, como pode se notar, imediatamente no título do álbum, "Cura Espiritual". Seu crescimento técnico e filosófico é notório e notável, sua percepção da realidade mesquinha da humanidade, mesmo precoce para seus 22 anos, faz com que sua figura passe a ser admirada não só pelo ufanismo de seus seguidores, mas também por sua acentuada intelectualidade.

Musicalmente, o álbum segue uma crescente técnica e sapiente. A capacidade de aprendizado e aperfeiçoamento de Chuck é assombrosa. Na lineup constam agora James Murphy (guitarrista da Hallow's Eve) e Terry Butler (baixista da Massacre), além de Bill Andrews na bateria. Murphy e Butler foram demitidos da banda logo após a turnê europeia que não contou com a participação de Chuck por descontentamento com a organização. a atitude deles em continuarem a turnê recrutando os roadies da banda em substituição a Schuldiner foi a gota d'água para que o gênio explosivo decidisse por não mais ter músicos fixos em sua companhia, optando, a partir de então, apenas por músicos contratados.

Explosão química e técnica

No ano seguinte, em 1991, são contratados Paul Masvidal, que naquele momento era guitarrista da Cynic, o novato Sean Reinert para a bateria e o magnífico baixista Steve DiGiorgio da Sadus para as gravações e lançamento do quarto álbum "Human". Numa produção refletiva e cristalina, o álbum conquistou picos de vendagem além de alcançar a midia televisiva como a primeira banda de metal extremo a ser ovacionada pela crítica com o clip de "Lack of Comprehension" veiculado exaustivamente pela MTV e outros meios afins. Composto de melodias intrincadas e técnica e performance inigualáveis até então, a veia progressiva de Schuldiner aflorou definitivamente, muito além dos traços dos álbuns anteriores, tornando o álbum em excelência da virtuose transcendental, algo jamais visto em qualquer lugar do planeta.

O filósofo

Para o quinto lançamento da banda, as saídas de Masvidal e Reinert ocasionaram a contratação de Gene Hoglan, ex- Dark Angel e Andy LaRocke, ex-King Diamond, duas presenças de soberania para a concepção de "Individual Thought Patterns", considerados por muitos como o ápice do desenvolvimento técnico da banda e, obviamente, de Schuldiner, coisa que não concordo. A tendência progressiva ainda mais acentuada (sinal de evolução), mas, com uma roupagem portentosa e assustadora, elevava Schuldiner ao título de virtuoso, dado o nível técnico e lírico de cada composição. "Overactive Imagination" e "Trapped In A Corner" alcançavam toda a sublimidade arraigada numa alma genial e, encerrando o álbum, a magistral "The Philosopher", que traduzia em flashs de lucidez, a introspectiva intelectualidade escondida sob os mantos da genialidade e somente vista entre os mestres do classicismo dos séculos 17, 18 e 19.


Misantropia

Após longa turnê, surge o momento da criação de um novo álbum, o sexto da banda. Por mais incrível que possa parecer, "Symbolic" é ainda melhor que o álbum anterior. Falar sobre as faixas mais consagradas no quesito técnica apurada é chover no molhado, pois Chuck se apresenta ainda mais soberbo, mas o lirismo aplicado, as letras de cada composição acabam se tornando o ponto alto da nova obra da Death, composições textualizadas no existencialismo, na psiquê humana e na misantropia.

"Perennial Quest", "Zero Tolerance", a faixa título e "Misanthrope" são poemas musicados que mostram a decadência da humanidade e o ódio de Chuck pela mesma. A tendência prog empurrou a banda para o classicismo jazzista e portanto, a necessidade da contratação de um guitarrista com essa aptidão, então veio Bobby Koelble da Azrael, banda de tecno-thrash de Minnesota. O desconhecido Kelly Conlan é o baixista contratado, dado o experimentalismo laboratorial evidente em Schuldiner.
Nesse mesmo tempo, Chuck inicia os trabalhos de seu novo projeto,a banda Control Denied, o que levaria a Death a um hiato de 3 anos e meio.

Catarse

Em 1998 a banda lança "The Sound of Perseverance", seu derradeiro álbum.
Os contratados: Richard Christy, bateria; Shannon Hamm, guitarra e Scott Clendenin, baixo, todos músicos contratados e aproveitados do projeto Control Denied.

O álbum é ainda mais técnico e mais progressivo, também e obviamente, é mais soberboso e introspectivo. Chuck abandona os guturais e passa a cantar nas bases da linha thrash, mais agudo, mais rasgado. Canções como "Scavenger Of Human Sorrow", "Spirit Crusher", "To Forgive Is to Suffer" e "A Moment Of Clarity" demonstram que a evolução de Schuldiner é incessante ou indomável tal a magnitude de sua proeminente deidade.

Há uns dias alguém comentou que a pior música de "The Sound of Perseverance" é a cover de "Painkiller" do Judas Priest. Eu fiquei admirando a diferença entre a genialidade de Schudiner e a idiotização da opinião de um ufanista desinformado e nada crível. Posso apenas lamentar a ausência de intelecto de um ser que, com tal tipo de pensamento (se é que pensa), provavelmente só ocupa lugar no mundo, sem produzir algo útil ou louvável de apreciação.


Negando o controle

A majestade se viu na obrigação de respeitar seus súditos e para tanto decidiu desvincular seu novo projeto Control Denied da massa seguidora da Death. Suas intenções eram de diminuir o poder e a agressividade de suas canções. Como fizera em "The Sound of Perseverance", reduzindo a força dos vocais guturais, ele contratou Tim Aymar, um vocalista mais melódico e recontratou Steve DiGiorgio para as nuances da cozinha de sua nova banda.

"The Fragile Art of Existence" é uma experimentação prog/power com todas as característica de prog/death desenvolvidas por Schuldiner na Death. A diferença é a suavidade melódica das vocalizações.
Com todo o arsenal de recursos criativos que lhe eram inerentes, Chuck, que já apresentava problemas de saúde ainda não diagnosticados, insinuava o quão frágil era (e é) a existência de um ser. Era tão sensível sua percepção que não precisamos entender os versos de suas canções nesse álbum, basta fechar os olhos e atentar apenas ao título de cada uma delas: "Consumido", "Espere o Inesperado", "Quando a Ligação se Torna Ausente" e "A Frágil Arte da Existência".

Morte, legitimidade e eternidade

Depois de lutar por dois anos contra um raro tipo de câncer cerebral, diagnosticado quando do lançamento do debut da Control Denied, ajudado financeiramente por fãs do mundo todo, já que o underground, por mais que seja genial, não rende grandes fortunas aos seus conspiradores, Chuck Schuldiner faleceu um dia após sua alta do hospital que negava o tratamento sem o devido pagamento antecipado, isso no dia 13 de dezembro de 2001.

Certo dia eu disse que a obra de Chuck só era reconhecida em virtude de sua precoce morte e não por sua genialidade em levar ao topo do virtuosismo a complexidade da música feia e brutal e com isso consegui uma legião de demônios a me odiar, mas é assim que sempre acontece, você só é bom depois que morre.

Numa só existência, as homenagens póstumas de "Porões do Underground", "Midas Touch", "Obras Sui Generis" e não uma ou duas "Trincas de Ases", mas sim, um "Octeto de Ases", coisa que só é possível encontrar escondida sob as mangas dos grandes gênios que sempre estarão a nos surpreender.

por Luís Henrique Campos

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...